A SEMANA DE ARTE MODERNA
ANTECEDENTES NACIONAIS
Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas(..) A outra espécie é formada pelos que vêem anormalmente a natureza e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. (...) Embora eles se dêem como novos, precursores de uma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a mistificação.(...) Essas considerações são provocadas pela exposição da senhora Malfatti onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia.
A reação da elite paulistana, que confiava cegamente nas opiniões e gostos pessoais do autor de Urupês, é imediata: escândalo, quadros devolvidos, uma tentativa de agressão à pintora, a mostra fechada antes do tempo.
O artigo demolidor serve, entretanto, par que os jovens "futuristas" brasileiros, até então dispersos, isolados em pequenos agrupamentos, se unam em torno de um ideal comum: destruir as manifestações artísticas que remontavam ao século XIX, especificamente, no caso da literatura, o parnasianismo poético, medíocre e superado. Neste sentido, a exposição de Anita Malfatti funciona como estopim de um movimento que explodiria na Semana de Arte Moderna.
(O Farol)
Há uma gota de sangue em cada poema
Mário de Andrade
Cinzas das horas - Manuel Bandeira
As esculturas de Brecheret
Mas, naquele instante, o caso Brecheret fornece munição à rebeldia estética que germinava na capital paulista. Ou como diria Menotti del Picchia: "Foi sua arte magnífica que abriu os nossos cérebros, (...) criado entre nós uma arte forte, liberta, espontânea."
A Semana de Arte Moderna
O Teatro Municipal foi alugado.
Mas, metaforicamente, com sua iconoclastia pesada, o poema delimita o fim de uma época cultural:
Enfunando os papos,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
'- Meu pai foi à guerra - Não foi! - Foi! - Não foi!'
O sapo-tanoeiro Parnasiano aguado
Diz: - 'Meu cancioneiro É bem martelado*.'
Vede como primo Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo Os termos cognatos.
O meu verso é bom Frumento* sem joio.
Faço rimas com Consoantes de apoio.
Vai por cinqüenta anos Que lhe dei a norma:
Reduzi sem danos A formas a forma.
Clame a sapataria Em críticas céticas:
'Não há mais poesia, Mas há artes poéticas...'
Brada de um assomo O sapo-tanoeiro:
Urra o sapo-boi:- Meu pai foi rei- Foi!- Não foi! - Foi! - Não foi!'
Oswald de Andrade
Graça Aranha
Ronald de Carvalho
Menotti del Picchia
Guilherme de Almeida
Sérgio Milliett
Anita Malfatti
Di Cavalcanti
Santa Rosa
Villa-Lobos
Guiomar Novaes
É possível, por outro lado, que a Semana não tenha se convertido no fato mais importante da cultura brasileira, como queriam muitos de seus integrantes. Há dentro dela, e no período que a sucede imediatamente (1922-1930), certa destrutividade gratuita, certo cabotinismo*, certa ironia superficial e enorme confusão no plano das idéias..
Mário de Andrade dirá mais tarde que faltou aos modernistas de 22 um maior empenho social, uma maior impregnação "com a angústia do tempo". Com efeito, os autores que organizaram a Semana colocaram a renovação estética acima de outras preocupações importantes. As questões da arte são sempre remetidas para a esfera técnica e para os problemas da linguagem e da expressão. O principal inimigo eram as formas artísticas do passado. De qualquer maneira, a rebelião modernista destrói o imobilismo cultural - que entravava as criações mais revolucionárias e complexas - e instaura o império da experimentação, algo de indispensável para a fundação de uma arte verdadeiramente nacional.
Caberia ainda ao próprio Mário de Andrade - verdadeiro líder e principal teórico do movimento - sintetizar a herança de 1922:
A estabilização de uma consciência criadora nacional, preocupada em expressar a realidade brasileira.
A atualização intelectual com as vanguardas européias.
O direito permanente de pesquisa e criação estética.
A crítica de Lobato serviu como elemento catalisador para eles. Pensaram, então, em aglutinar forças e marcar presença através de um ato espetacular. A revolução estética que anunciavam merecia algo apoteótico. Aproximava-se o ano de 1922, o ano do centenário da Independência brasileira: era o momento ideal! Como quase todos os integrantes do movimento modernista eram filhos do patriciado paulista, não tiveram dificuldade em obter a adesão de Paulo Prado, curador do Teatro Municipal de São Paulo, que também providenciou os recursos. O prédio tinham um poderoso valor simbólico. Majestoso, imponente, acolhedor dos espetáculos do mundo cosmopolita, ele dominava os altos do Vale do Anhangabaú, da mesma forma que a elite quatrocentona via-se a cavaleiro da sociedade da época. Era, pois, o local ideal para fazer-se um escândalo. Dos dias 11 a 17 de fevereiro, os modernistas promoveram conferências sobre a nova estética entremeadas de recitais, de música ou leitura de algumas obras. No saguão, alguns pintores e escultores espalharam seus trabalhos. A platéia foi à loucura: urravam, guinchavam, pateavam, silvavam, vaiavam de enrouquecer para mostrar seu desagrado com aquilo tudo. Não permitiram que se escutasse nenhuma frase do que Oswald disse. Com Villa Lobos não foi diferente. Tendo adentrado no palco com sandálias, pensaram que era uma pantomima do músico e ficaram quase histéricos. Na verdade, o jovem Villa Lobos havia machucado o pé. Como resumo desse espírito de irreverência, Mário de Andrade deixou os versos:
| Ode ao burguês
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, o burguês-burguês! A digestão bem-feita de São Paulo! O homem-curva! O homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! (Mário de Andrade) |
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| Mário e Oswald de Andrade (retratos de Tarsila do Amaral) |
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| Cartaz do Teatro Municipal |
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| Figuras populares nas telas de
Di Cavalcanti |
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| As massas rejeitaram o biscoito fino que Oswald queria-lhes oferecer (tela de Tarsila do Amaral) |
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Para os intelectuais em geral - exceção feita ao grupo regionalista de Pernambuco, liderada por Gilberto Freyre, e o de São Paulo, tendo à frente Monteiro Lobato -, a Semana da Arte Moderna serviu como uma redescoberta estética do Brasil, mostrando-o fruto de uma cultura mestiça, vacilando sempre entre a rusticidade e a civilização, em perpétuas dúvidas hamletianas sobre ser ou não ser do Terceiro Mundo.
Embora as aproximações não sejam imediatas, é flagrante o desejo de mudanças que varria o país, fosse no campo artístico, fosse no campo político.
Um dos equívocos mais freqüentes das análises da Semana consiste em identificá-la com os valores de uma classe média emergente. Ela foi patrocinada pela elite agrária paulista. E os princípios nela expostos adaptavam-se às necessidades da refinada oligarquia do café. Uma oligarquia cosmopolita, cujos filhos estudavam na Europa e lá entravam em contato com o "moderno". Uma oligarquia desejosa de se diferenciar culturalmente dos grupos sociais. Enfim, uma classe que encontrava no jogo europeísmo (adoção do "último grito" europeu) - primitivismo (valorização das origens nacionais) - que marcaria a primeira fase modernista - a expressão contraditória de suas aspirações ideológicas.
Outro equívoco é considerar o movimento como essencialmente antiburguês. O poema Ode ao burguês, de Mário de Andrade, e alguns escritos de outros participantes da Semana podem levar a esta conclusão. Mas não esqueçamos que a burguesia rural, vinculada ao café, apoiou os jovens renovadores. E, além disso, toda crítica dirigia-se a um tipo de burguesia urbana, composta geralmente de imigrantes, inculta, limitada em seus projetos, sem grandeza histórica, ao contrário das camadas cafeicultoras, cujo nível de refinamento cultural e social era muito maior.
Neste caso, os modernistas se comportam como aqueles velhos aristocratas que menosprezam a mediocridade dos "novos-ricos". No início da década de 30, Oswald de Andrade já perceberia o quão contraditória era a sua crítica ao universo das classes citadinas. Daí o prefácio do romance Serafim Ponte Grande, em 1933.
A situação "revolucionária" desta bosta mental sul-americana, apresentava-se assim: o contrário do burguês não era o proletário - era o boêmio! As massas, ignoradas no território e como hoje, sob a completa devassidão econômica dos políticos e dos ricos. Os intelectuais brincando de roda.
* Iconoclasta: destruidor de ícones, de valores consagrados.* Enfunando: inflando.* Martelado: alusão ao martelo do escultor, com quem o poeta parnasiano se comparava.* Frumento: o melhor trigo.* Cognatos: que tem a mesma raíz.
O MODERNISMO DE 22 A 30(FASE DE DESTRUIÇÃO E EXPERIMENTAÇÃO)
O projeto dos modernistas de São Paulo pode ser dividido em três linhas básicas que se conjugam e confundem :
- DESINTEGRAÇÃO DA LINGUAGEM TRADICIONAL
Questiona-se toda a arte acadêmica, com suas fórmulas envelhecidas, a expressão gasta, a linguagem convertida em clichês. O estilo parnasiano e o bacharelismo são os alvos prediletos dos ataques modernizadores. Para efetivar tal destruição, usa-se a paródia, a piada, o sarcasmo. Os romances Serafim Ponte Grande e Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, levam essa prática às últimas conseqüências.
- ADOÇÃO DAS CONQUISTAS DAS VANGUARDAS
A liberdade de expressão, a visão amorosa e crítica do cotidiano, a linguagem coloquial e outras inovações desenvolvidas pelas vanguardas européias são assimiladas, ainda que desordenadamente pela geração de 22.
A revista Klaxon, de 1922, e os primeiros textos publicados no ano da Semana mostram essa preocupação com a contemporaneidade. Não tem fundamento, portanto, a afirmativa de que os modernistas seriam antieuropeus. A identificação com as velhas matrizes culturais ainda é evidente.
- BUSCA DA EXPRESSÃO NACIONAL
Em 1924, em Paris, Oswald de Andrade assiste a uma exposição de máscaras africanas. Elas parecem expressar toda a identidade dos povos negros da África. Nesse momento, Oswald se interroga: "E nós, os brasileiros? Quem seríamos? Qual o nosso retrato? Alguma arte nos representaria tão significativamente como aquelas máscaras?"
Atrás dessas perguntas, começava a delinear-se a luta por um abrasileiramento temático. O nacionalismo surge no horizonte do grupo modernista apenas em 1924. Antes, as questões fundamentais eram estéticas. A partir de agora passam a ser ideológicas: vai se discutir o nacional e o popular em nossa literatura. Sonha-se com a delimitação de uma cultura brasileira, de uma alma verde-amarela.
É uma espécie de retorno às fontes primeiras de uma civilização original. Para ali encontrar algo que o colonialismo português não conseguira esmagar: a ausência de repressões morais e sexuais, e a alegria de viver, sobremodo entre os índios. Esta pesquisa de uma subjacente alma nacional só poderia ser realizada, no entanto, com o instrumental artístico da modernidade. Por isso, os antigos habitantes não deveriam merecer análises antropológicas ou preservacionistas, e sim um registro ousado, inventivo e até humorístico, com a linguagem das vanguardas. Aliás, o Brasil seria esta síntese do primitivo e do inovador.
Quase todos os criadores da primeira fase vivem a dimensão primitivista. Porém, cometem o erro de considerar o Brasil como unidade e não como diversidade social. A "síntese brasileira" não existia no plano histórico e não poderia ocorrer no plano artístico. Apropriam-se assim da mitologia do povo, das tradições dos índios, etc., sem mostrar como essas realidades culturais haviam se gerado e sobrevivido. Procuravam mais uma simbologia para a nacionalização da arte do que verdades humanas e históricas oferecidas pelos valores populares ou indígenas.
Entre os próprios modernistas não houve acordo quanto ao rumo a seguir. Formaram-se vários grupos, proclamaram-se muitos movimentos, todos insistindo em sua autenticidade nacionalista. As mais significativas dessas tendências foram o Pau-Brasil e a Antropofagia, ambas criadas por Oswald de Andrade.
O MODERNISMO DE 22 A 30(FASE DE DESTRUIÇÃO E EXPERIMENTAÇÃO)
BUSCA DA EXPRESSÃO NACIONAL
- A ironia contra o bacharelismo: "O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. (...) A riqueza dos bailes e das frases feitas.(...) Falar difícil."
- A luta por uma nova linguagem: "A língua sem arcaísmo, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos. (...) Contra a cópia, pela invenção e pela surpresa."
- A descoberta do popular: O Pau-Brasil descortina para os modernistas o universo mítico e ingênuo das camadas populares: "O Carnaval é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. A formação étnica rica. Riqueza vegetal."
Exemplo do conjunto da visão oswaldiana, na época, encontra-se em erro de português (1925):
Quando o português chegou Debaixo de uma bruta chuva Vestiu o índio Que pena!Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português
Observe-se no poema, além do verso livre, da ausência de pontuação, e da dicção humorística, o contraste que o autor estabelece entre a natureza européia, marcada pelo frio e pela chuva, com a tropical, marcada pelo sol; entre o português que veste o índio com seus valores repressivos e o índio que poderia ter despido o português desses mesmos valores, tendo a locução interjetiva "Que pena!" como indicadora da posição do poeta perante os fatos.
Antropofagia:
O manifesto antropofágico, lançado em 1928, amplia as idéias do Pau-Brasil, através dos seguintes elementos:
- A insistência radical no caráter indígena de nossas raízes: "Tupy or not tupy that is the question".
- O humor como forma crítica e traço distintivo do caráter brasileiro: "A alegria é a prova dos nove".
- A criação de uma utopia brasileira, centrada numa sociedade matriarcal, anárquica e sem repressões: "Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud - a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama." - A postura antropofágica como alternativa entre o nacionalismo conservador, anti-europeu e a pura cópia dos valores ocidentais: "Nunca fomos catequizados.(...) Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará."
Curiosamente, Oswald de Andrade não produz nenhuma obra ficcional ou poética dentro do espírito antropofágico (a não ser, talvez, a peça Rei da vela). Caberia a Mário de Andrade, com o romance Macunaíma, e a Raul Bopp, com o poema Cobra Norato, a tentativa de levar para o espaço da criação literária as idéias do Manifesto.
Nos anos de 1967, Caetano Veloso e outros compositores populares voltam a acenar com os princípios antropofágicos para combater a estreiteza da chamada M.P.B., que rejeitava a incorporação de elementos da música pop internacional à música brasileira.
Verde-Amarelo (1924) e Anta (1928):
Com a participação de Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e Plínio Salgado, estas tendências opõem-se ao primitivismo destruidor e debochado dos "antropófagos" através do reforço do "sentido de brasilidade" e de uma tendência conservadora e direitista no plano social.
DE NICOLA, José – Literatura Brasileira, das Origens aos Nossos Dias.
15ª ed. São Paulo: Scipione, 1998 – págs.272 a 318
INFANTE, Ulisses – Curso de Literatura de Língua Portuguesa:
volume único: ensino médio – 1ª ed. São Paulo: Scipione, 2001 – págs. 428 a 474
OLIVEIRA, Clenir Belleze de - Arte Literária: Portugal/Brasil São Paulo:
Moderna 1999 - págs. 416 a 477
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